Entramos em Mafómedes por aquela calçada organizada, modelada por gerações. Chegámos pelas 9:00 H da manhã e não vimos uma única forma humana, nem ouvimos qualquer ruido. Lembrei-me da Flávia, colega de trabalho que há poucas semanas embarcou comigo numa nova experiência profissional, ávida da vida na cidade: o que diria ao chegar àquele amontoado de telhados distribuídos, sem critério, pelo vale do rio Teixeira, sem vislumbre de alma.
Começamos o trilho a poucos metros da Tasca do Valado, serra acima, sempre a subir até à Capela da Nossa Senhora do Marão, no auge da Serra, a 1416 metros de altitude (não foi o mesmo trilho de https://www.myrun.pt/2021/04/12/o-tempo/). Nesta altura do ano ( neste ano, em particular) o enquadramento da serra não apresenta as explosões de amarelo e roxo, do Verão, nem enverga o peso dos mantos brancos regulares, no inverno, mas não deixa de ser colossal e transformador.
Durante quase três kms, trepamos caminho por um trilho de pedras desorganizadas, rasgado numa encosta imperturbável de granito e vegetação rasteira e uniforme. Á nossa volta, ondas de verde-garrafa desenhavam curvas gigantes num horizonte sem nuvens e não se ouviam senão as rajadas de um vento agudo.






Três kms percorridos e entramos num caminho de terra batida, bastante largo, pouco técnico mas desafiante, encaixado em aglomerados de pinheiros bravos, temperados com carquejas e urzes. Só voltamos a encontrar uma subida técnica, a menos de um km da capela e o som que mais se ouvia passou a ser o arfar dos nossos brônquios esforçados.






Chegamos à capela e não evitamos uma paragem, no miradouro, para absorver o enquadramento majestoso de esculturas de granito gigantes, desenhadas em curvas uniformes trajadas de fardas verdes, bem aparadas.



Tentei ligar à Flávia, mas não tinha rede. Queria saber se tinha tido dificuldade em encontrar a entrada do Hospital. Tinha-me pedido indicações porque queria ir dar sangue mas não sabia onde se dirigir porque está a morar no Porto há poucas semanas. Saiu de casa sem retaguarda, sem colo de pais nem amparo de amigos ou desafio de namorado. Veio porque não cabe nas crenças limitadoras com que foi ( quase todos somos ) educada. Veio porque a sua ordem de prioridades e o seu conceito de sucesso, não cabe em padrões sociais. Veio com medo, mas veio e tive a sorte de ter vindo trabalhar comigo. Aliás, tenho tido o privilégio de trabalhar com pessoas incríveis da mesma faixa etária (entre 20 a 25 anos). Não sei qual é a letra que confere a definição sociológica para a geração de pessoas nascidas entre 1997 e 2002 ou, sequer, quantas gerações cabem neste período. Nem, tão pouco, quais as características que lhes atribuem. Mas ouço, constantemente, falar de uma geração mais nova do que eu, que atravessa uma crise profunda de identidade, de valores, de falta de oportunidades. De uma geração acomodada, desiludida e sem perspetivas, que se encosta em casa dos pais e se dedica a acumular diplomas sem arriscar, nem desenvolver. Pois tenho tido o privilégio de trabalhar com jovens muito diferentes: agora a Flávia, anteriormente a Ana Sofia, a Sara, o Luis e outros, todos com menos quinze a vinte anos do que eu, confiantes, autodidatas e responsáveis. Trabalham não por necessidade, mas por querer acrescentar valor, querer contribuir, ser úteis. Rasgam estereótipos, ignoram definições de género, idade ou classe. Ajudam e integram os colegas, prejudicando os seus objetivos, desconstroem rótulos. E, sobretudo, ensinam-me a aceitar a diferença, a ser construtiva e a defender-me da pressão dos objetivos com muita tolerância e pragmatismo. São simples e plenos como a imensidão da serra.






Após uma breve pausa, descemos para o ponto de partida. Ligeiros, a planar sobre avenidas de terra batida abertas em declives áridos, atingimos um dos pontos épicos do trilho: uma descida vertiginosa, feita de torrentes de pedras xistosas, costurada numa encosta esmagadora de monumentos graníticos: o Paulo não resistiu e sentou-se, com a Ester, a sorver a vastidão do horizonte. Os utimos dois kms fizeram-se, de novo, em trilho plano, envoltos em penedos e encostas de mantos verdes, bem tosquiados, com uma visão perfeita para a aldeia de Mafómedes. Terminamos, revigorados, prontos para mais uma Segunda-Feira de trabalho, na companhia da Flávia e outros colegas, desta formidável geração, seja qual for a letra que lhe atribuem.
Ana



Max elevation: 1414 m
Min elevation: 761 m
Total climbing: 779 m
Total descent: -805 m
Total time: 03:42:01